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COVID-19: Medição de temperatura dos trabalhadores

Na actual conjuntura desencadeada pela doença pandémica COVID-19 e no âmbito do subsequente processo de desconfinamento, entrou em vigor, no passado dia 2 de Maio de 2020, uma alteração legislativa respeitante ao controlo da temperatura corporal dos trabalhadores por parte dos empregadores ou seus representantes para efeitos de acesso e permanência no local de trabalho.

Segundo o Governo, esta medida:

  • Não prejudica a protecção de dados dos indivíduos, uma vez que se encontra expressamente proibido o registo da temperatura corporal associado à identidade dos mesmos – salvo com a devida autorização do próprio;
  • Possibilita a interdição do acesso do trabalhador ao local de trabalho, se a sua temperatura corporal for superior à normal temperatura corporal;
  • Encontra-se justificada, exclusivamente, por motivos de protecção da saúde do trabalhador e de terceiros.

Ora, no passado dia 23 de Abril, a Comissão Nacional de Dados Pessoais (CNPD) já havia emitido orientações a respeito da recolha de dados de saúde dos trabalhadores, salientando que a recolha e registo da temperatura corporal dos trabalhadores corresponde a um tratamento de dados pessoais, o qual, por respeitar a uma categoria de dados sensíveis, está sujeito a um regime jurídico especialmente reforçado. É preciso enfatizar, neste particular, que a própria recolha, ainda que sem registo é, por si só, um acto de tratamento de dados.

Nesse sentido veio a Presidente da CNPD pronunciar-se, por ocasião de uma entrevista feita a um órgão de comunicação social, aí referindo que esta é uma medida «infeliz» e que dá origem a um «disparate jurídico», tendo já motivado dezenas de queixas por parte de trabalhadores e de organizações sindicais a esta autoridade. Para Filipa Calvão, Presidente da CNPD, esta é uma medida que, além de poder constituir uma violação do direito à protecção de dados pessoais, é promotora de incerteza e insegurança (não só a nível jurídico), facilitando a discriminação e o estigma entre cidadãos e comprometendo as garantias dos trabalhadores.

Saliente-se que este diferendo entre a CNPD e os órgãos de soberania não constitui novidade, dado que, com a publicação da Deliberação da CNPD n.º 2019/494, de 3 de Setembro, a CNPD declarou a desaplicação de algumas normas constantes da Lei de Protecção de Dados (Lei n.º 58/2019, de 8 de Agosto) por considerar as mesmas como desconformes com o RGPD e, bem assim, violadoras do direito da União Europeia.

Pesados os direitos e interesses em jogo – nomeadamente, a saúde pública, a retoma da economia e a protecção dos dados pessoais dos cidadãos –, a CNPD alertou no sentido de que a necessidade de prevenção de propagação da doença não legitima, sem mais, a adopção de toda e qualquer medida que a entidade empregadora considere adequada. Cabe à entidade empregadora abster-se de iniciativas que impliquem a recolha de dados pessoais de saúde dos trabalhadores sem base legal para o efeito, sobretudo quando não tenham sido ordenadas pelas autoridades competentes – no caso, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) e a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

Não obstante estas recomendações da CNPD, bem como as já emitidas pela DGS e pela ACT apelando à auto-medição da temperatura corporal – assim, de carácter voluntário –, o Governo veio, ainda assim, criar a base legal que legitima o tratamento deste dado de saúde pelos empregadores – ignorando, e não devendo, se o mesmo é lícito ou ilícito ao abrigo da legislação atinente à protecção de dados pessoais.

Desde logo, e como refere a Presidente da CNPD:

  • Assiste-se à confusão do legislador entre o acto de recolher a temperatura corporal e o acto de registar esse dado, ainda que ambos consubstanciem tratamentos de dados;
  • O Governo contradiz-se ao prever esta restrição ao direito à protecção de dados pessoais dos trabalhadores e ainda assim referir que tal não prejudica o referido direito – qualquer restrição a direitos, liberdades e garantias é, por definição, em seu prejuízo;
  • O registo destes dados com o consentimento do trabalhador não é sequer possível, consabido que é que o consentimento para o tratamento de dados pessoais, conferido no âmbito de uma relação laboral, não tem validade jurídica, por carecer da liberdade que lhe é essencial – como é, aliás, a posição da CNPD.

Na prática, é possível antever as consequências nefastas para os trabalhadores que daqui resultarão. Desde logo, como salienta a Presidente da CNPD, gera-se um clima de grande incerteza para o trabalhador. Mantêm o direito à retribuição caso seja impedido de trabalhar? A falta será justificada? O que se considerará «temperatura superior ao normal»? E no dia seguinte o trabalhador pode deslocar-se novamente ao local de trabalho? Como deverão ser feitas as deslocações pelo trabalhador?

Através das supramencionadas recomendações, algumas dúvidas daqui resultantes parecem encontrar-se respondidas pelas autoridades competentes, nomeadamente pela DGS quanto à temperatura corporal considerada febre (≥ 38.0ºC) e pela ACT quanto às deslocações de e para os locais de trabalho, em que o trabalhador deverá, sempre que possível, evitar o ajuntamento de pessoas e manter o distanciamento social de dois metros em espaços fechados e de um metro em espaços abertos. No entanto, diga-se que, se o trabalhador não tiver outro meio de transporte que não seja o transporte público, fica ameaçado, à partida, o cumprimento destas regras.

Importa ainda salientar que, neste âmbito, veio o Senhor Deputado Telmo Correia (CDS-PP) requerer alguns esclarecimentos à CNPD sobre o tratamento deste dado de saúde no actual contexto pandémico. Em resposta, a CNPD teve oportunidade de frisar, entre outras questões, que o consentimento do trabalhador apenas será juridicamente relevante se estiverem asseguradas as condições que permitam a liberdade inerente a essa manifestação de vontade. Isto porque, como salienta a CNPD, encontra-se historicamente demonstrado que as relações laborais são relações assimétricas, o que desvirtua, assim, a liberdade necessária para esta manifestação de vontade por parte do trabalhador poder consistir num fundamento lícito ao tratamento do dado de saúde aqui em causa.

Ademais, também esclarece a CNPD que fundamentar este tratamento de dados com base em interesse público – além de empeçar na ausência de previsão legal das medidas adequadas de salvaguarda dos direitos fundamentais aqui em causa –, sem que assim seja determinado pela DGS, não é permitido num Estado de Direito Democrático, uma vez que só a esta compete, em função da evolução da pandemia, determinar as medidas adequadas e necessárias à prossecução e salvaguarda da saúde pública. Por esta razão, a CNPD aclarou que, previamente à aprovação destas orientações, confirmou com a DGS que o caminho a seguir, no contexto laboral, se mantinha, e mantém, o da auto-medição da temperatura por parte dos trabalhadores (tal como também assim indicam outras entidades europeias e internacionais).

Finalmente, e no que ao combate da pandemia diz respeito, não pode deixar de ser sublinhado – como, aliás, também assim salientou a CNPD – que a eficácia da medição da temperatura corporal não encontra suporte científico (nem estatístico, dado o número de assintomáticos), o que coloca em causa a própria justificação do Governo para a implementação desta medida, com a inerente ameaça do direito à protecção de dados pessoais sensíveis do trabalhador perante o empregador. Já para não mencionar que a febre constitui sintoma de outras doenças que continuam a observar-se, ignorando, naturalmente, o actual contexto pandémico.

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